A degradação ambiental, a emergência climática e o amplo uso de mídias digitais deram origem, nos últimos anos, a um aumento vertiginoso da atenção das pessoas com a saúde e o ambiente. De outro lado, também criaram um “terreno fértil” para a difusão de soluções fáceis como o banimento de produtos, insumos ou fontes energéticas.
Três características básicas de nosso Planeta inviabilizam tais tentativas simplistas de solução de problemas:
1) tudo está interligado (rochas, minerais, água, ar, substâncias orgânicas, solos, plantas, animais e humanos);
2) tudo a por ciclos e processos naturais elementares (ciclo do carbono, do oxigênio e do nitrogênio) e complexos (ecossistemas, cadeias tróficas, circulação atmosfera-rios-oceanos e recursos energéticos) e;
3) carbono (C) é vida, sobretudo em regiões abundantes em recursos (Fig.1), enquanto o excesso de sua concentração na atmosfera, fruto de rupturas de processos naturais pela utilização de práticas inadequadas, é o real problema.
Figura 1. Produção primária bruta (média anual) nas diferentes regiões do Planeta.
Fonte: WorldMapper (2018).
Isso coloca a ocupação e o uso da terra, a produção agropecuária e a integridade dos ciclos biogeoquímicos no centro da transição energética. Assim, esta última deve, necessariamente, incluir a substituição, a adaptação e a diversificação das fontes e matrizes energéticas, mas também a racionalização do consumo, com aumento ou redução dependendo da situação, com justiça e equidade.
Matriz energética e transição sustentável
As peculiaridades e as fontes de energia de um local, região ou país têm funções distintas em sua economia e sustentabilidade, condicionam a resiliência de sua matriz de produção de energia e determinam os caminhos de sua transição energética. Assim, enquanto, em 2023, a participação média das energias renováveis no mundo foi de 14,7%, no Brasil elas representaram 49,1% do total produzido (Fig. 2).
Figura 2. Oferta total de energia para economias selecionadas, por fonte de energia.
Fonte: Traduzido de IEA (2024).
Esta importante participação de fontes renováveis na matriz energética brasileira torna-se totalmente sui generis, na medida em que, nos últimos anos, seu incremento ocorreu:
1) pelo aumento da participação da energia solar, eólica e oriunda de derivados de cana-de-açúcar (Fig. 3);
2) com redução efetiva da contribuição percentual da energia hidráulica e seus impactos na gestão territorial e nos serviços ecossistêmicos e socioambientais.
Figura 3. Participação das fontes renováveis na oferta de energia no Brasil em 2023 (a) e ao longo dos anos (b).
Fonte: Adaptado de EPE (2024).
O contraste da matriz energética brasileira em relação aos demais países é ainda mais acentuado quando se considera a energia elétrica. Ao o que as fontes renováveis respondem por 30% da demanda mundial de eletricidade, no Brasil elas representam 89% da produção total (Fig. 4), devendo, segundo a IEA (2024), alcançar 95% em 2026.
Figura 4. Composição da matriz elétrica de diversos países e respectivas previsões (ano base) de alcance de 50% de participação de fontes renováveis.
Fonte: Caldeira et al. (2020).
Transição ou adaptação energética: o Brasil e o mundo
O fato de a transição energética ter como foco, em nível global, o aumento do uso de fontes renováveis em detrimento dos combustíveis fósseis, como petróleo, gás e carvão, não quer dizer que isso deva ocorrer em todos os lugares, da mesma forma e ao mesmo tempo.
Este esforço global, que visa reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e os impactos das mudanças climáticas, em linha com o Acordo de Paris (que limita o aumento de temperatura a 1,5°C), também deve garantir a segurança energética de forma justa, equitativa e sustentável (Fig. 5).
Figura 5. Transição energética: benefícios socioeconômicos e ambientais.
Fonte: OCBIO/FGV (2024).
O alcance destes objetivos demanda, obviamente, muito mais do que a substituição de fontes fósseis por não fósseis. Os excedentes de gases de efeito estufa presentes hoje na atmosfera são suficientes (mesmo com a supressão total do uso de combustíveis fósseis) para manter a progressão do aquecimento devido à diminuição da capacidade de uso de gás carbônico (CO2) nos diferentes ecossistemas marinhos e terrestres.
Além disso, a diminuição da cobertura e da atividade biológica dos solos, pela ocupação urbana desordenada, simplificação dos sistemas agrícolas (separação da agricultura e da pecuária e uso inadequado da terra resultam em menor infiltração de água e maior absorção de calor pelos solos.
Estes diferentes elementos apontam para a necessidade premente, não apenas da redução das emissões de GEE, mas da remoção de carbono (C) atmosférico. Neste sentido, a boa notícia é que dispomos de uma tecnologia altamente eficiente, selecionada ao longo de milênios e que permite transformar CO2, que aquece a atmosfera, em vida: a fotossíntese. A eficiência de fixação de CO2 aumenta em determinados grupos de plantas à medida que este gás se concentra na atmosfera, em uma “revolução do bem” que gera renda e qualidade de vida.
O setor agropecuário na transição energética
Quando se fala em transição energética e agropecuária, o que primeiro vem à mente é a bioenergia oriunda da produção agrícola. No Brasil, a mistura de etanol na gasolina ainda em 1931, evidencia o caráter amplo da agropecuária, como fonte de alimentos e fibras, mas também de energia. Por outro lado, a prestação de serviços ambientais (Fig. 6), com destaque para a regulação térmica / hídrica e o estoque de C nos solos, ampliam as contribuições do setor para a escala planetária.
Figura 6. Serviços ecossistêmicos da produção agropecuária.
Fonte: Adaptado de Spratt et al. (2021).
A “força” da bioenergia
O uso de biocombustíveis é uma tendência crescente na matriz energética de países como o Brasil, onde esta modalidade representou quase 20% de toda a energia consumida em 2023, em um claro processo de desfossilização atmosférica que se inicia com a absorção de CO2 pela fotossíntese, durante o crescimento das plantas.
Resumidamente, o processo se conclui com a queima de biocombustíveis, onde parte do CO2 volta para a atmosfera, descrevendo um ciclo praticamente neutro de carbono (Fig. 7), diferentemente do que ocorre no uso de energias fósseis com a transferência de C de camadas do subsolo para a atmosfera.
Figura 7. Ciclo do carbono no uso de biocombustíveis (etanol).
Fonte: UNICA (2022).
A descrição simplificada desse processo subestima, usualmente, os benefícios da atividade, uma vez que em grande parte dos solos tropicais (pouco férteis e degradados pelo mau uso), o manejo adequado das culturas resulta em pegadas de C negativas devido ao sequestro desse elemento no solo.
Diferentemente, em sistemas de produção intensiva, o uso de insumos agrícolas, máquinas e demais equipamentos pode dar origem a emissões que superam as remoções de C. Mesmo assim, em média o uso de etanol de cana de açúcar, nas condições de produção brasileiras, propicia uma redução nas emissões de GEE da ordem de 90 para 20-30 gramas de CO2eq por megajoule em relação à utilização de gasolina (Fig. 8).
Figura 8. Emissões de GEE de diferentes fontes de energia (em gCO2eq/MJ).
Fonte: Rodrigues (2024).
Esses diferenciais, o aumento da demanda e o desenvolvimento tecnológico do setor no Brasil estimularam a produção de etanol de milho de segunda safra (cerca de 20% da produção de etanol, em 2023), assim como de etanol de biomassa, com a instalação da primeira planta do mundo de produção de etanol de segunda geração (Fig. 9).
Figura 9. Evolução da produção de bioenergia no Brasil.
Fonte: Rodrigues (2024).
De forma simultânea:
1) o biodiesel ou a substituir o consumo de diesel no transporte (cerca de 12% do total) e na produção de eletricidade (cerca de 10% da matriz energética nacional - em torno de 10 milhões de residências em 2023);
2) houve um grande crescimento da produção de biogás e biometano a partir de resíduos (dejetos de confinamentos e coprodutos vegetais), com utilização pós-processamento como biofertilizantes, em um enfoque de economia circular;
3) avanços tecnológicos aram a projetar uma diversificação do setor energético que combina melhoria de produtos consolidados, reaproveitamento de potenciais poluentes, viabilização de novos produtos e produção de energia descentralizada.
O verde “prestador” de serviços ambientais
Muito se fala em tecnologias promissoras de mitigação de emissões de GEE e até mesmo de procedimentos de captura direta de C atmosférico. Porém, por ora, a agropecuária é a única atividade econômica capaz de remover C da atmosfera com eficiência e custo efetivo negativo (já que, na maioria das vezes, os produtos pagam as despesas).
Dependendo da situação, grandes quantidades de C são absorvidas e depositadas no solo por dezenas de anos. Efeitos adicionais podem ser obtidos por meio da cobertura vegetal, como a amenização de extremos térmicos, que resultam em economia de energia, e promoção de bem-estar e saúde para humanos e animais. Esses efeitos somados às emissões evitadas pela substituição de combustíveis de origem fóssil geram, no caso da bioenergia, uma verdadeira “goleada” da produção vegetal em prol do Planeta.
Mesmo se tendo muito a fazer na adequação do cômputo e reconhecimento de remoções de origem biogênica, sua potencialização é uma oportunidade ímpar, particularmente no Brasil, onde o controle do desmatamento pode, por si só, reduzir 50% das emissões de GEE, promovendo vida e prosperidade.
Na busca da valorização destes serviços, diferentes práticas produtivas (Fig. 10) podem contribuir de forma direta ou indireta.
Figura 10. Práticas que contribuem para a remoção de carbono da atmosfera e para a redução das emissões de gases de efeito estufa.
Fonte: Elaborada pelos autores.
O potencial de resposta destas alternativas depende evidentemente dos regimes de chuva, radiação solar, relevo e fertilidade dos solos, mas seus efeitos têm sido observados em praticamente todos os ambientes, com exceção das áreas congeladas do Planeta, e podem ser ampliados pela conscientização / formação técnica adequada.
Apesar das vantagens do manejo conservacionista serem amplamente conhecidas no meio científico, a capacitação em escala de prestadores de serviço para as novas / velhas formas produtivas e sua integração pode fazer toda a diferença.
Tempos de regeneração e a “Missão 1.5 - Nosso País, Nossa Energia”
O desenvolvimento tecnológico que permitiu avanços inimagináveis no controle de pragas e doenças, na produção de alimentos e energia, e até mesmo no conhecimento das galáxias e da origem do universo, trouxe consigo a verdadeira “virada de chave” de nosso século: a possibilidade de lidar com o complexo.
Em tempos de sensores e satélites, estatística multivariada, inteligência artificial e computadores
quânticos, não é aceitável que continuemos pensando nossos problemas na ótica do “desmembrar para entender” e do “simplificar para especializar”, ou ainda, da simples substituição: “do bom e do ruim” e “do nós contra eles”. Do culto às tecnologias e insumos à promoção de processos naturais, o desafio atual se concentra no planejamento do território, na valorização dos recursos locais e no monitoramento de sistemas e produtos (Fig. 11).
Figura 11. Do planejamento ao monitoramento: rumo à valorização dos recursos locais.
Fonte: Adaptada de RegenerAgri (2022).
Nessa óptica, práticas como plantio direto e rotação / diversificação de culturas, pastoreio rotativo, uso de bioinsumos (bioestimulantes, vitaminas, biochar, inóculos de fungos e insetos benéficos), silicatos e insumos sintéticos mais eficientes (quando indispensáveis), atuam não mais como meras formas de obtenção de um produto. Sua utilização se dá como parte de estratégias que visam a valorização das peculiaridades e a expressão do potencial produtivo dos diferentes ambientes.
Esta ruptura de paradigmas, que permitiu a evolução da discussão ambiental do “sustentável” ao “regenerativo” e que direcionou a busca de melhorias da produção de alimentos e energia para a integração de atividades e para a redução de desigualdades, traz consigo a necessidade de atualização / ampliação de termos. Assim, de transição / substituição energética, ou-se a falar em adaptação / diversificação / desenvolvimento energético justo, soberano e inclusivo.
Nesse sentido, o grande desafio de países como o Brasil, com um baixo nível de consumo per capita de energia, como reflexo da disparidade social de o a bens e serviços, é o uso adequado da diversidade dos recursos energéticos (Fig. 12).
Figura 12. Diversificação e uso adequado de recursos como base de uma matriz energética adaptada às peculiaridades locais, regionais e nacionais.
Fonte: Adaptado de Rodgers (2021) e IUCN (2019).
Diferentes interações da produção de energias renováveis com demais atividades propiciam melhores oportunidades de diversificação produtiva, geração de renda e agregação de valor, tanto em meio urbano como rural. A fermentação em digestores anaeróbios pode fornecer gás e eletricidade para utilização própria ou disponibilização na rede, enquanto turbinas eólicas e painéis fotovoltaicos permitem o fornecimento descentralizado de energia, proteção / abrigo e barreiras para separação de cultivos e criações (Fig. 13), entre outros.
Figura 13. Integração agropecuária com produção de energia eólica e solar.
Fonte: Franke (2007) e Sharpe et al (2021).
A combinação destas diferentes alternativas, sob o auspício do manejo adequado da cobertura do solo, da integração de atividades e da racionalização do uso de recursos reúne demandas e soluções potenciais para três grandes convenções da ONU: Desertificação, Mudanças Climáticas e Biodiversidade.
Sua implementação, no ritmo e abrangência que a ciência sugere, a por assumirmos que só temos um planeta com particularidades, mas, com necessidades básicas semelhantes, conexões continentais de ordem social, econômica e ambiental, e desafios que exigem empatia e mudanças de mentalidade.
O futuro já chegou, as oportunidades estão cada vez mais evidentes.
Venha conosco construir e desfrutar do novo mundo!!!
Sobre o Instituto de Agricultura Regenerativa
O Instituto de Agricultura Regenerativa é uma associação privada, sem fins lucrativos, engajada na consolidação de um novo paradigma: a produção de alimentos saudáveis, ricos em nutrientes e sem resíduos de substâncias tóxicas pode promover a restauração de processos e relações naturais, gerando benefícios socioeconômicos e ambientais. Como tal, seus efeitos se assemelham ao que ocorre em ambientes naturais, onde os diferentes indivíduos interagem, de forma sinérgica e complementar.
Sem deixar de reconhecer a contribuição de práticas como o preparo mínimo do solo e o uso de culturas de cobertura em substituição aos agrotóxicos como contribuições efetivas da agricultura orgânica, a agricultura regenerativa dá um o à frente: incorpora uma abordagem holística da produção agrícola, embasada em princípios de hierarquia ecológica e práticas conservacionistas. Com isso, regeneração, manutenção e aumento da resiliência da produção de alimentos se aliam à melhoria da qualidade de vida de produtores e consumidores de alimentos, tanto do meio rural como de grandes aglomerações urbanas.
Mais informações, e o site: https://br.regenerativeagricultureinstitute.org
Colaboraram para esta publicação:
Marcelo Abreu da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Ecoetologia.
Milene Dick - Médica Veterinária, Mestre em Agronegócios e Doutora em Zootecnia.
Rualdo Menegat - Geólogo, Mestre em Geociências e Doutor em Ecologia.
Cícero Célio de Figueiredo - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.
Francisco Milanez - Biólogo, Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor em Educação em Ciências.
Eduardo Pradi Vendruscolo - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.
Simone Baía - Engenheira Química e Mestre em Geoquímica Ambiental.
Vespasiano Borges de Paiva Neto - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.
Cléia Maria Siqueira - Médica Veterinária, Mestre em Zootecnia.
Derli Siqueira da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre em Zootecnia e Doutor em Agronomia.
Homero Dewes - Farmacêutico, Mestre em Bioquímica e Doutor em Biologia.
Referências
Caldeira, J., et al. Brasil: paraíso restaurável. 2020
EPE. Balanço energético nacional: ano 2023. Empresa de Pesquisa Energética. 2024.
Franke, DY. CC BY-SA 2.0. 2007. In: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2355854;
IEA. Total energy supply for G20 countries by energy source, 2022. International Energy Agency. 2024.
IUCN. Conserving healthy soils. International Union for Conservation of Nature. Issues Brief. 2019
OCBIO/FGV. Agroenergia: transição energética sustentável: edição etanol. Observatório de Bioeconomia, Fundação Getúlio Vargas. 2024.
RegenerAgri. Construindo soluções compartilhadas. 2022. Disponível em: https://www.regeneragri.com/.
Rodgers, D. Are cow farts destroying the planet? SacredCow. 2021.
Rodrigues, L. Potencial da agroenergia: transformando a realidade energética do Brasil. In: Agroenergia: transição energética sustentável. OCBIO/FGV e CNA/Senar. 2024.
Sharpe, KT., et al. Evaluation of solar photovoltaic systems to shade cows in a pasture-based dairy herd. J. Dairy Sci. 104(3). 2021.
Spratt, E. et al. Accelerating regenerative grazing to tackle farm, environmental, and societal challenges in the upper Midwest. J.Soil and Water Cons. 76 (1). 2021.
UNICA. Etanol: nova era da mobilidade. União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia. 2022.
WorldMapper. Terrestrial Ecosystem Productivity. Map 302. 2018.