Com a melhoria dos índices reprodutivos e o uso mais intenso de sêmen sexado, muitas fazendas brasileiras estão começando a produzir um número mais elevado de novilhas de reposição. Em fazendas que ainda estão crescendo, este excesso de novilhas viabiliza a rápida ocupação das novas instalações. Mas quando o rebanho está estabilizado e o produtor não encontra mercado para este excesso de novilhas, uma possível estratégia é inseminar parte das fêmeas leiteiras (particularmente as vacas de menor mérito genético) com sêmen de touros de raças de corte.
Beef-on-dairy pode ser uma estratégia para os produtores de leite?
Esta prática conhecida como “Beef-on-Dairy” também traz o benefício de produzir um bezerro macho de maior valor, que terá mercado na bovinocultura de corte, bem como irá diminuir a prática de abater machos recém-natos, na primeira semana de vida, prática que sempre causa mal-estar em boa parte do mercado consumidor. A prática de abater um bezerro de poucos dias pode ser muitas vezes a melhor decisão econômica para um rebanho, mas certamente é uma prática que arranha a imagem da bovinocultura de leite.
Características de qualidade da carcaça superiores, bem como maior valorização da carcaça de cruzamentos Corte × Holandês em comparação com animais de cruzamento Holandês × Holandês foi documentada com base na análise de 117.593 registros de progênies de vacas leiteiras por Berry et al. (2018).
Essa estratégia de cruzamento para gerar progênie com maior aptidão para corte é especialmente adotada quando não há necessidade de produzir muitas novilhas de reposição para ampliar o rebanho. Para acelerar o progresso genético, recomenda-se utilizar sêmen leiteiro sexado em novilhas (nulíparas) e nas melhores vacas (multíparas), destinando essas crias à reposição. Já nas demais vacas, indica-se o uso de sêmen de corte. Além de impulsionar o ganho genético do rebanho leiteiro, essa prática contribui para aumentar a receita do produtor por meio da comercialização de carne bovina.
A recria e terminação dos bezerros machos nas próprias fazendas pode trazer um benefício adicional: o melhor aproveitamento das sobras da dieta total (TMR) das vacas em lactação — que muitas vezes são ofertadas de forma inadequada a vacas de baixa produção, vacas secas ou novilhas.
Figura 1. Vaca com bezerros cruzados
O cruzamento beef-on-dairy impacta a saúde reprodutiva de vacas leiteiras?
Nos últimos anos, o número de acasalamentos de touros de corte com vacas leiteiras tem aumentado consideravelmente. Esse aumento destaca a importância da fertilidade dos touros de corte no contexto da produção leiteira. No entanto, quando se considera a vaca que está produzindo o bezerro cruzado, essa prática pode causar impactos significativos. Mas afinal, quais seriam esses impactos?
No cenário ideal e fisiológico parto/lactação em vacas leiteiras, o evento parto é crucial e tem influência direta na produção de leite. Complicações durante o nascimento, como a distocia (ou dificuldade de parto) nos seus diversos graus, têm impactos na saúde, reprodução e produção de leite na lactação subsequente. Estudos demonstram que partos distócicos reduzem a produção de leite na lactação que se inicia, com autores relatando efeitos negativos que podem se estender por até 6 meses.
As perdas na produção de leite aumentam conforme a gravidade das dificuldades no parto, sendo mais severas em casos de distocia grave. Alguns estudos foram conduzidos para verificar os efeitos do cruzamento Beef × Dairy, especialmente eventos associados ao parto, como a distocia, e de que maneira esse cruzamento afeta o desempenho na lactação subsequente da mãe.
É conhecido que bezerros de corte de raças europeias continentais normalmente são mais pesados ao nascimento, o que, teoricamente, pode aumentar o número de eventos de distocia nas vacas. Mas o parto de vacas Holandesas mães de bezerros filhos de touro de corte realmente têm mais chances de ser distócico?
Para responder a essa pergunta e avaliar os impactos do cruzamento Beef × Dairy, Basiel et al. (2023) conduziram um estudo com 75.256 lactações registradas de 39.249 vacas em 10 rebanhos leiteiros nos Estados Unidos. Foram consideradas vacas das raças Holandês, Angus, Charolês, Limousin, Simental e mestiços.
Os resultados mostraram que vacas prenhas de bezerros de corte tiveram um período de gestação maior do que aquelas prenhas de bezerros holandeses, sem prejuízos na saúde ou descarte até os 60 dias de lactação. Essas vacas não apresentaram diferença significativa na probabilidade de distocia em comparação com vacas prenhas de bezerros holandeses. No entanto, a probabilidade de natimortos foi maior em vacas cruzadas com touros mestiços, enquanto não houve diferença significativa para outras raças de corte (Tabela 1).
Adicionalmente, vacas prenhas de bezerros de corte não diferiram na produção de leite, gordura e proteína no leite quando comparadas com vacas mães de bezerros 100% holandeses. Esses resultados sugerem que, embora a gestação possa ser mais longa, a saúde e a produtividade das vacas não são necessariamente comprometidas pela inseminação com sêmen de raças de corte.
Tabela 1. Probabilidade de incidência de natimortos e distocia por raça do touro.
Angus | Charolês | Mestiços | Holandês | Limousin | Simental | Outras | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Natimortos | 2,28ab | 0,48ab | 5,14b | 2,01a | 2,35ab | 2,26ab | 0,89ab |
CE 41(%) | 0,259 | 0,326 | 0,588 | 0,251 | 0,325 | 0,124 | 0,453 |
CE 32(%) | 1,99 | 3,61 | 2,18 | 2,00 | 1,96 | 2,06 | 2,61 |
a,b, Valores médios dentro de uma linha com sobrescritos diferentes são diferentes em P < 0,05.
1 Distocia definida como escore de facilidade de parto (CE) ≥4.
2 Distocia definida como pontuação (CE) ≥3.
Fonte: Adaptado de Basiel et al. (2023)
Impacto na produção de leite
Um estudo anteriormente conduzido por Berry et al. (2020), avaliou dados de 346.765 partos de 230.255 vacas Holandesas em 3.604 rebanhos na Irlanda, considerando as raças Angus, Aubrac, Belgian Blue, Charolês, Hereford, Limousin, Salers e Simental, considerando todos os partos sem distocia.
Os resultados mostraram uma menor produção de leite para vacas que pariram bezerros de raças de corte, variando conforme a raça do touro escolhido (Figura 2). Por exemplo, quando considerada a produção de leite média em 305 dias, comparando com vacas Holandesas, as vacas que pariram bezerros de touros Angus apresentaram redução de 45,2 kg de leite, enquanto aquelas que pariram bezerros de touros Charolês tiveram uma redução média de 101,1 kg de leite.
Os autores ressaltaram que estas perdas em produção representam apenas 1,5% quando se utiliza um touro de corte em relação ao uso de um touro da raça Holandês. Além disso, as produções de gordura e proteína em 305 dias também foram menores em vacas mães de bezerros mestiços. Assim, esses resultados indicam que a inseminação com sêmen de raças de corte pode ter impactos variados na produção e composição do leite, dependendo da raça do touro utilizado.
Figura 2. Médias ajustadas para produção de leite (losango), produção de gordura (quadrado) e produção de proteína (triângulo) para cada raça do touro de corte.
Fonte: Berry et al. (2020)
Impactos no desempenho reprodutivo
Um estudo conduzido por Espínola Alfonso et al. (2023), com base em 587.288 partos registrados entre 1997 e 2020 na Suíça, avaliou o impacto do cruzamento Beef × Dairy em vacas leiteiras. A pesquisa analisou indicadores produtivos e reprodutivos, como produção de leite, proteína e gordura, fertilidade e taxa de descarte, comparando vacas primíparas e multíparas.
Os resultados mostraram que vacas que pariram bezerros cruzados com raças de corte (Beef × Dairy), como Angus e Hereford, tiveram uma queda na produção na lactação subsequente. Em média, a produção acumulada em 305 dias foi cerca de 21 kg menor do que em vacas que pariram bezerros de raças puras leiteiras. Esse efeito negativo foi mais pronunciado em vacas multíparas do que em primíparas.
Nos primeiros 75 dias em lactação (DEL), a diferença foi menor, com vacas cruzadas produzindo aproximadamente 11 kg a menos de leite do que aquelas com bezerros Dairy × Dairy. Esses dados reforçam a necessidade de avaliar cuidadosamente os impactos produtivos ao adotar o cruzamento com raças de corte em sistemas leiteiros.
Quanto à fertilidade nesse mesmo estudo, foram avaliados:
1) intervalo em dias entre o parto até a primeira IA;
2) intervalo em dias entre o parto até a última IA;
3) intervalo em dias entre a primeira IA até a última IA;
4) intervalo entre partos e;
5) número de inseminações.
Embora a pesquisa de Espínola Alfonso et al. (2023) não tenha encontrado impactos expressivos nas características de fertilidade, os efeitos sobre a taxa de descarte de vacas leiteiras cruzadas com raças de corte merecem atenção. As estimativas para fertilidade — como número de inseminações e intervalos reprodutivos — foram estatisticamente significativas, mas de magnitude muito pequena (menos de ± 2 dias para os intervalos e abaixo de 0,05 para o número de inseminações).
No entanto, os dados sobre sobrevivência até a próxima lactação indicaram que todas as combinações de cruzamento entre raças de corte e leiteiras (Beef × Dairy) apresentaram resultados consistentemente piores. As vacas que pariram bezerros cruzados apresentaram menor probabilidade de permanecer no rebanho, com redução de cerca de 0,05 a 0,06 no primeiro parto e de 0,07 a 0,10 no segundo. Também foi observada diminuição da sobrevivência nos primeiros 75 dias em lactação, entre 0,007 e 0,01.
Esses dados devem ser analisados com cautela. Os autores do estudo alertam que, em muitas fazendas, vacas inseminadas com sêmen de raças de corte já haviam mostrado menor produção anterior, sendo naturalmente mais propensas ao descarte. Ou seja, a escolha do sêmen de corte pode, na prática, refletir um critério prévio de seleção negativa, e não apenas o efeito do cruzamento em si.
Por fim, embora muitas pesquisas se concentrem no desempenho dos bezerros Beef × Dairy, há pouca atenção sobre os efeitos desse tipo de cruzamento no desempenho produtivo e reprodutivo da vaca leiteira após o parto. Esta análise busca justamente evidenciar essa lacuna e incentivar avaliações mais amplas no uso estratégico do sêmen de corte.
Embora ainda existam poucas pesquisas detalhadas sobre os efeitos reprodutivos do cruzamento de vacas leiteiras com raças de corte, em comparação com partos de raças leiteiras puras, já se observa que podem ocorrer pequenos impactos negativos para a vaca, mãe do bezerro cruzado.
No entanto, a inseminação de vacas leiteiras com sêmen de raças de corte é uma estratégia viável e pode ser altamente lucrativa, especialmente quando o objetivo é agregar valor aos bezerros sem comprometer significativamente a saúde e a produtividade do rebanho. Para garantir o sucesso do cruzamento leite × corte, é fundamental escolher touros de corte com genética adequada, considerando tanto as características desejadas na progênie quanto os possíveis efeitos sobre a vaca leiteira. O manejo reprodutivo cuidadoso, incluindo a seleção de touros e o monitoramento da vaca durante a gestação e o parto, é essencial para reduzir riscos e maximizar os resultados dessa prática.
Referências bibliográficas
Basiel, B.L., A.A. Barragan, T.L. Felix, C.D. Dechow. The impact of beef sire breed on dystocia, stillbirth, gestation length, health, and lactation performance of cows that carry beef × dairy calves. J. Dairy Sci., v. 107, n. 4, p. 2241-2252, 2024.
Berry, D.P., M.J. Judge, R.D. Evans, F. Buckley, A.R. Cromie. Carcass characteristics of cattle differing in Jersey proportion. J. Dairy Sci., v. 101, n. 12, p. 11052-11060, 2018.
Berry, D.P., S.C. Ring. Short communication: the beef merit of the sire mated to a dairy female affects her subsequent performance. J. Dairy Sci., v. 103, n. 9, p. 8241-8250, 2020.
Espinola Alfonso, R.E., W.F. Fikse, M.P.L. Calus, E. Strandberg. How does a beef × dairy calving affect the dairy cow's following lactation? J. Dairy Sci., v. 107, n. 7, p. 4693-4703, 2024.